Rui Quadros, caçador guia e campeão de tiro: Tombou um Kambako

Por Marcelino Gonçalves*

Nascido na histórica Ilha de Moçambique, em 1937, RUI QUADROS, é o primogénito de uma prole de nove irmãos, filhos de um casal cujo patriarca – Afonso Quadros – era funcionário do quadro da administração civil da colónia e que se tornou muito conhecido no território precisamente por ser chefe de uma tão grande família, coisa rara entre os brancos. Outra faceta que notabilizou o pai Quadros era a sua grande paixão pela caça, que praticava nas áreas da sua jurisdição administrativa, quando chefe de Posto, a propósito de resolver problemas de alimentação do pessoal sob a sua responsabilidade empregue nas diversas actividades (administrativo, obras, presos, abertura e limpeza de picadas, etc,) ou mesmo para eliminar animais daninhos que invadiam os povoados e suas culturas.

As constantes transferências a que estavam sujeitos os funcionários daquele quadro administrativo levaram Afonso Quadros e a sua família a viverem praticamente em todos os distritos da colónia de Moçambique e em locais dos mais isolados e inóspitos do interior. Dizia-se, não sei se com fundo de verdade, que o pai Quadros pedia para ocupar os Postos Administrativos mais isolados e afastados que normalmente eram recusados pelos seus colegas, precisamente porque se localizavam nas regiões onde existia maior densidade de animais selvagens. Estiveram na rota de trabalho deste funcionário localidades do interior com tais características, como Lunga, Itoculo, Matibane, Lalaua, Muite, Mutuali, Malema, Ligonha, Macuzi, Inhassunge, Gilé, Funhalouro e Saúte.

Naturalmente que os filhos, desde pequenos, criaram também a mesma paixão do seu progenitor, sabido que é que a caça é uma atracção muito forte para os jovens que têm o privilégio de viver em contacto com o mato e os animais bravios. O Rui, sendo o mais velho, desde tenra idade que acompanhava o pai nas incursões pelo mato e desde os seis anos que começou a lidar com espingardas. Começou pelas de pressão de ar e depressa passou às de bala de calibre ponto vinte e dois e depois às de calibres maiores. Iniciou-se no abate de aves e roedores e aos oito anos já matava pequenos antílopes. Aos nove anos abateu o seu primeiro búfalo e aos doze o primeiro elefante, tudo sob a batuta do seu pai e por vezes dos próprios cipaios do Posto.

Conheci o pai Quadros em meados da década de cinquenta durante as deambulações que também fiz como funcionário do mesmo quadro. Curiosamente, ele chefiou um Posto que bem conheci: o de Saúte, localizado na circunscrição do Alto Limpopo, província de Gaza, entre o rio Save e o rio Limpopo. Uma região de clima muito seco e com pouca população humana mas povoada de muitos milhares de animais bravios. Foi considerada, até à década de oitenta, a melhor área de caça de Moçambique e aquela que albergava mais variedades de espécies, algumas delas raras, como a girafa, a avestruz, a mezanze, a palapala cinzenta, a chita, a lebre saltadora, a raposa orelhuda e o lince. Outras espécies comuns, como elefantes, búfalos, elandes, zebras, gnús, palapalas, gondongas, cudos, leões, leopardos, chacais, hienas, inhalas, inhacosos, hipopótamos, impalas, changos, crocodilos, facoceros e cinco espécies de cabritos, eram muito abundantes. A célebre planície de Banhine era o epicentro desta região tão fértil em fauna selvagem e ficava a dois passos da povoação de Saúte. Um autêntico paraíso para a prática da caça, com destaque  para a chamada caça grossa, que ali foi praticada em regime livre até à década de sessenta. Viria, depois, a ser ali criada a coutada oficial n. 17 que mais tarde, em 1973, foi extinta devido à criação do Parque Nacional do Banhine.

Caçador-guia e desportista

Rui quadros mostra a um amigo algumas das mazelas da caça

Foi nesta e noutras regiões idênticas que Rui Quadros passou a maior parte da sua juventude e adquiriu uma larga experiência como caçador, tornando-se também um apaixonado pela vida animal. Só depois da instrução primária, que lhe foi ministrada pela mãe, se afastou para continuar os estudos (concluiu aos 17 anos os estudos secundários na África do Sul), mas durante as férias voltava sempre ao seio familiar e todo o seu tempo disponível era ocupado nas caçadas, que praticava à sombra das facilidades concedidas pelo próprio pai na qualidade de representante máximo da autoridade na respectiva área.

Gorados os seus sonhos de tornar um biólogo virado para o ramo da fauna selvagem, por dificuldades financeiras dos pais para o manterem a estudar na África do Sul, procurou em Lourenço Marques uma actividade que o mantivesse em contacto com os animais bravios e assim começou por estagiar no Museu Álvaro de Castro (actual Museu de História Natural) onde aprendeu a embalsamar pequenas espécies, nomeadamente aves. Rapidamente se interessou pela ornitologia e ao serviço do Instituto de Investigação Científica de Moçambique dedicou-se à captura de pássaros. Percorreu todo o território em busca de espécies raras não catalogadas, obtendo mais de uma centena de espécies novas para a vasta colecção do Museu. Durante uma dessas campanhas, de mais de seis meses, na região do Lago Niassa, desenvolveu ali o gosto pela caça submarina, uma actividade que, para além de emotiva, lhe dava substancias proveitos, pois vendia o pescado capturado, que normalmente atingia algumas dezenas de quilos por dia.

Entretanto, a cidade capital também o cativou. Gostava de belas mulheres e de belos carros. O Ford Mustang descapotável era uma das suas imagens de marca. Mas o irmão acha que o Rui se dava da mesma maneira no conforto de um hotel de cinco estrelas ou na esteira de uma palhota, no meio do mato.

Na capital, à altura Lourenço Marques, dedicava o tempo disponível à prática do tiro de stand e ao atletismo. Em ambas as actividades depresessa se notabilizou, logo a partir da categoria de júnior. No atletismo foi campeão de 400 e 800 metros. No tiro atingiu o patamar cimeiro em todas as provas, tornando-se campeão de Moçambique tanto na prancha como nos pombos, título que renovou sucessivamente, torneio após torneio, vencendo também inúmeras provas internacionais em que participou. Centenas de taças, medalhas e outros troféus foram-se acomulando na sua casa ao longo dos anos, primeiro em vitrines organizadas e depois a monte sobre os móveis da sala.

De entre os melhores atiradores da época só o seu colega e amigo Amadeu Peixe o equiparou em títulos. Morreu no último domingo (14 de junho), depois de uma sopa de feijão manteiga no seu inseparável Piri-piri.

* adaptação editorial do Savana (edição de 18/06/2010)

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