Arquivo de Luís Loforte

José Mucavele: o tributo do Clube dos Entas (*), pelo percurso de vida e pela brilhante carreira do cantor

Posted in Comportamento, Moçambique, Radiodifusão, Word Music with tags , , , on 8 de Abril de 2010 by gm54

José Mucavele e Edmundo Galiza Matos, em novembro de 2009(José Mucavele e Edmundo Galiza Matos (um dos autores do Programa “Clube dos Entas”)

José Alfredo Mucavele, natural de Chibuto, Gaza, 1950. Na próxima segunda-feira, 5 de Abril, quando fizermos a reposição destas palavras, um dos maiores compositores e intérpretes do nosso país estará completando 60 anos de vida. Aqui e agora, e certamente traduzindo a vontade do país artístico, e não só, um modesto tributo do «Clube dos Entas» a José Mucavele. Pelo seu percurso de vida e pela brilhante carreira que tem trilhado desde 1969.

Conhecemos o José Mucavele em 1969, trabalhava então como pintor publicitário, ocupação para a qual ingressara em benefício de um curso de desenho tirado na Escola Industrial da então cidade de Lourenço Marques.

Decorria ainda o ano de 1969 quando o vemos integrado no conjunto «Os Escravos», conjunto que, depois, e claramente por razões de ordem política, se viu obrigado a mudar para a designação de «Os Psicadélicos».

Depois dos «Psicadélicos», Mucavele é convidado a integrar o agrupamento «Djambu 70», onde actua como trompetista. Em 1971, faz parte da banda «Conceito», formada por músicos universitários actuando na casa dos Antigos Estudantes de Coimbra e na residencial universitária vulgarmente conhecida por SELF.

Em 1972, Mucavele é visto a tocar com «Os Outros», tão somente a melhor banda de música ligeira de todos os tempos na cidade da Beira. Também tocou para a «Alta Tensão», outra banda de referência dos anos 70.

A partir de 1973, a carreira musical de José Mucavele parece eclipsar-se. É visto a leccionar a 4.ª Classe em Caniçado, Gaza, e depois, em 1974, a engajar-se nas fileiras da Frente de Libertação de Moçambique, para o que teve de fazer treinos militares em Nachingweya, na Tanzânia, juntamente com outros jovens de então como o até recentemente Ministro das Obras Públicas e Habitação, Felício Zacarias.

Só que não foram, nem o professorado, nem as armas que conseguiram sublimar a apetência de José Mucavele pelo campo cultural. Começa por integrar o grupo cénico das então FPLM, para depois, entre 1976 e 1977, na empresa Metochéria Agrícola, em Nampula, onde foi colocado como funcionário, desenvolver uma das suas maiores paixões: a pesquisa etno-cultural ligada à música.

Não nos custa por isso acreditar que é dessas pesquisas que emerge esta autêntica obra-prima de José Mucavele, do qual sobressai o Muthimba, o Tsope e o Tufu. E isto se mais não couber. Que o diga Felício Zacarias, que o ouviu o trmpete de José Mucavale, pela primeira vez, na Tanzânia.

José Mucavele retoma a carreira em 1978, nomeadamente com a sua participação no festival da juventude realizado em Cuba, e sobretudo com a sua integração no projecto que conduziria à criação do Grupo RM, onde actuava como trompetista. A circunstância pode ser aproveitada para breves considerações sobre o Grupo RM.

O cantor e compositor e o autor deste texto, Luís José Loforte(O cantor e compositor, junto com Luís Loforte, autor deste texto do Clube dos Entas)

O projecto do Conjunto RM foi sem dúvida uma ideia interessante, principalmente por ter entretido pessoas e fixado canções até aí reduzidas à sua expressão meramente popular.

Não querendo elaborar muito à volta dessa matéria, manda porém a verdade dizer que quem acompanhou como nós o percurso histórico deste agrupamento da nossa estação, sabe o quanto a sua estrutura orgânica limitava, e muito, os horizontes e a criatividade dos inquietos músicos, entre os quais se conta, sem dúvida, o José Mucavele. Era o problema da constelação de estrelas, mas também, e sobretudo, do burocratismo e da compensação nivelada por baixo, os quais, como sabemos hoje tão bem, não são bons parceiros da cultura. Aliás, como toda a tentativa de dirigir a cultura, ou de fazê-la por decretos.

Estamos em «CLUBE DOS ENTAS», que decidiu, para esta noite, prestar um tributo a José Mucavele, por ocasião dos seus 60 anos de vida.

Dissemos que José Mucavele iniciou a sua carreira em 1969, um ano marcante para a canção internacional, ou seja, o ano do festival de Woodstock.

Sobre isso, e num dos programas com que evocámos os 40 anos desse acontecimento, Hortêncio Langa, outro músico de créditos firmados entre nós, defendeu que praticamente todos os músicos da sua geração, ele próprio incluído, foram fortemente influenciados pelo festival de Woodstock. E para sustentar a sua tese, avançou mesmo que José Mucavele, seu companheiro de percurso,  terá adoptado a técnica de Richie Heavens na forma como toca a sua guitarra. Uma técnica que confudi até grandes compositores nossos conhecidos, como seja, o português Rui Veloso e o moçambicano Roberto Xitsondzo.

Apenas para recuperar o que então dissemos, Richie Heavens abriu o festival de Woodstock no lugar de Joe Cocker, por este ter apanhado uma tremenda pedrada na noite de véspera. Realinhou-se o programa, e lá teve Richie Heaven que subir ao palco.

Beneficiando ou não do impacto que deixam sempre aqueles que inauguram os grandes acontecimentos, a verdade é que Heavens electrizou literalmente a assistência e todos aqueles que o viram em filme rodado sobre Woodstock. Rui Veloso como que nos obrigou a ir à poeira do tempo, onde pudemos verificar que de facto fazia todo o sentido a sua afirmação.

De resto, José Mucavele e Rui Veloso são companheiros de uma já longa estrada, que terão provavelmente vivido as mesmas crises de identidade musical, o que lhes confere alguma autoridade na apreciação de um sobre o outro. O que a nós compete dizer sobre isso é que estranho seria se os bons não se inspirassem nos melhores! De resto, qual é o músico dos anos 60 e 70 que não foi beber do Woodstock?

Nassurdine Adamo (direita), um dos autores do programa, em conversa com outro radiófilo, Emídio Oliveira(Nassurdine Adamo, à direita, o sonoplasta do Clube dos Entas, na companhia de outro radiófilo, Emídio de Oliveira)

Mais à frente veremos como José Mucavele teve as suas próprias opções a partir das matrizes musicais nacionais, aí se tornando, sim, o músico que todos conhecemos, aliás a razão por que o celebramos esta noite.

Influenciado ou não pelo festival de Woodstock, ou se quiserem por Richie Heavens, o mais importante é que José Mucavele veio a encontrar e a seguir o seu próprio caminho, como aliás o prova toda a sua obra.

Interessante também é saber o que pensa José Mucavele sobre a música de outros criadores de Moçambique.

Decorria o ano de 2009 quando num debate, não nos ocorrendo se  na televisão ou na rádio, ouvimos José Mucavele dizer que para ele o maior músico de Moçambique de todos os tempos é Matchonguezy.

Tratando-se sem dúvida de uma afirmação discutível, a nossa opinião sobre ela é de que Mucavele terá sido igual a si próprio. Não fugiu um milímetro da sua forma peculiar de provocar uma polémica: fazer uma afirmação arrojada para deixar as pessoas estupefactas e obrigá-las a pensar. E tal como se esperava, a maior parte das pessoas não sabia quem era o tal Matchonguezy. O moderador incluído.

Na nossa opinião, e sem que nos arrisquemos tanto pela catalogação em excesso, Matchonguezy é, de facto, um ilustre desconhecido do meio musical moçambicano. E se nos é permitida uma comparação também algo arrojada, Matchonguezy estará para a música moçambicana, como Luís de Camões é para a literatura portuguesa. E até pelo percurso de vida de ambos. Morreu no anonimato e na quase indigência, deixando porém atrás de si uma obra de dimensões descomunais. À parte as comparações, julgamos que se impõe um estudo aturado à obra de Matchonguezy. E talvez concluamos o mesmo que concluiu José Mucavele.

Mas aonde pretende chegar o José Mucavele quando qualifica o Matchonguezy como o maior músico de sempre do nosso país? Na nossa modesta opinião, a afirmação de Mucavele não nasce do nada. Tem também por alvo a justificação do caminho que ele próprio resolveu trilhar: a música com tonalidade verdadeiramente moçambicana. Logo, o herói maior tinha de ser a sua nova candeia: Matchonguezy.

(*) O Clube dos Entas é um programa da Rádio Moçambique, de atoria de Edmundo Galiza Matos, Luís Loforte e Nassurdine Adamo. Vai para o AR às quintas-feiras (22H05) e segundas-feiras (02H05) e pode ser ouvido no www.rm.co.mz

O presente texto, de autoria de Luís José Loforte, é uma adaptação do programa dedicado a Zé Mucavele, que dia 5 de Abril completou 60 anos e 41 de carreira.

Clube dos Entas (*): Conjunto “João Domingos”, a música e o “Whisky Time”para a Frelimo

Posted in Moçambique, Radiodifusão with tags , , , , , on 17 de Junho de 2009 by gm54
João Domingos, actuação ao vivo em Macau

João Domingos, actuação ao vivo em Macau

O Texto que se segue, de autoria do Luís Loforte, é parte da edição do “Clube dos Entas” a ser transmitido Quinta-feira, 18, e Segunda-feira, 22, na Antena Nacional da Rádio Moçambique. É ilustrado com músicas do Conjuntos João Domingos e Djambu.

“Muitos ouvintes (leitores) quererão saber as circunstâncias em que João Domingos da Conceição se interessou pelo mundo da música.

Nasceu em Maio de 1933 e cresceu até os 14 anos na vila de Inharrime, 70 quilómetros a sul da cidade de Inhambane. É em Inharrime que João Domingos tem as suas primeiras paixões pela música, primeiro como disc jockey dos gramofones e respectivos vinis de 78 rotações, e depois assistindo, fervorosamente, a actuações da popular «Ossumane Valgy Jazz Band», ida de Zandamela.

Em conversa telefónica que mantivemos recentemente com ele, João Domingos surpreendeu-nos ao fazer questão de nos dizer que Ossumane Valgy tocava a “verdadeira marrabenta”, o que nos pareceu com isso querer esbater a percepção que alimentávamos de que teria aprendido a ouvir e a tocar a marrabenta nos subúrbios da então cidade de Lourenço Marques.

Com ou sem essa percepção, a verdade é que o guitarrista, vocalista e compositor Ossumane Valgy inspirou várias gerações de músico nacionais, como o intérprete Fernando Luís, que ficou célebre, nos anos 80, por interpretar temas da banda de Zandamela, nomeadamente Zavala Tótè. Mas aqui falamos do conjunto «João Domingos».

Nós acreditámos que o conjunto «João Domingos» terá sido o agrupamento que mais palcos pisou, quer nacionais, quer internacionais, pelo menos ao seu tempo. Até ao extremo-oriente se fez representar, representando-nos, afinal, a todos nós.

CD do Conjunto João Domingos gravado em Macau

CD do Conjunto João Domingos gravado em Macau

De todos esses palcos queremos, porém, destacar um em especial, nomeadamente  o da Associação Africana da então cidade de Lourenço Marques.

Destacamo-lo não somente pelos espectáculos memoráveis que o conjunto «João Domingos» lá deu, mas também pelo seu contributo no enriquecimento da folha de serviços sociais, culturais e políticos que a agremiação acumulou ao longo dos anos da dominação colonial. Só quem não sabe, ou finge que não sabe o valor histórico da Associação Africana pode tolerar que aquele espaço físico seja votado àquele abandono, ou a actividades que não sejam mais dignas da sua estatura política.

Como podemos dizer aos mais novos, olhando para aquilo que é hoje aquele espaço, que era ali onde se editava o «Brado Africano»? E isto para perguntarmos porque é que aquele espaço não é declarado um monumento nacional, tal como em tempos foi declarado, e muito merecidamente, o Centro Associativo dos Negros da Província de Moçambique? Um preconceito de alguns?

Lamentações à parte, a verdade é que a Associação Africana foi um grande palco do João Domingos da Conceição, do «Gonzana», do «Young» Issufo, do «Globe Trotter» e do Filipe Tembe. Mas também de grandes dançarinos que os acompanhavam, como foram os casos de Mussá Tembe, Alfredo Caliano, Elarne Tajú, Carolina Albasine, Lázaro, Saíde Mundle, esse grande futebolista que jogou ao lado de Eusébio, e ainda Arlindo Haridás.

E já agora, uma pequena curiosidade, só digna de pessoas com coragem.

Contrariamente ao que hoje acontece, em que as festas são abrilhantadas por música em regime contínuo, naqueles anos havia o chamado Whisky Time, um intervalo geralmente destinado ao arrefecimento dos amplificadores da aparelhagem, mas também ao retemperar das forças pelos músicos.

O que acontece é que no toque de chamada para o grupo subir ao palco, o João Domingos usava o acorde principal do indicativo musical do programa radiofónico da Frente de Libertação de Moçambique. Só pessoas restritas sabiam desse temerário atrevimento de João Domingos”.

(*) O “Clube dos Entas”, é um programa radiofónico da Rádio Moçambique, transmitido na sua Antena Nacional (FM 92.3). É produzido por Edmundo Galiza Matos, Luís Loforte e Nassurdine Adamo. Pode ser escutado também na Net: www.rm.co.mz. Vai para o “AR” as quintas-feiras (22H05) e segundas-feitras (02H05)

Eusébio Johane Tamele: um trovador e escritor com ideias e convicções próprias (*)

Posted in Uncategorized with tags , , , on 21 de Abril de 2009 by gm54

ejtamele

Tive o ensejo e a felicidade de conhecê-lo pessoalmente mas, para minha infelicidade, morria pouco depois. Da longa conversa que tivemos, em Xai-Xai, aquando do lançamento das primeiras emissões autónomas da Rádio Moçambique na província de Gaza, ficou-me a sensação de que Eusébio Johane Tamele não terá sido apenas “mais um”, ou seja, mais um intérprete da canção ligeira moçambicana, mas também um homem com ideias e convicções próprias.

Eusébio Johane Tamele deu-me a ler excertos de um manuscrito de sua lavra no qual relata as suas memórias e alguns registos histórico-políticos das suas vivências. Fiquei impressionado com a riqueza do material ali registado mas, e porque se tratava de um primeiro contacto com o homem, ainda me ficou algum cepticismo. A dúvida, porém, havia de ser dissipada quando, no decurso das comemorações dos 40 anos da morte de Mateus Sansão Muthema, em Chikhumbane, ouvimos uma evocação referir, a certa altura, que Eusébio Johane Tamele foi parceiro e confidente político daquele nacionalista da Frente de Libertação de Moçambique. Hoje, aqui e agora, se calhar também rendemos homenagem a um escritor, e não somente a um grande trovador.

Abordando agora a sua vertente musical, aquela em que Eusébio Joohane Tamele ficou mais conhecido.

Hoje, muitas décadas depois, não tenho dúvidas de que o homem não se desvia um único milímetro do traço musical da sua terra natal, embora não resistamos à tentação de o classificarmos em termos mais universais, como o iremos fazer de seguida.

Socorrendo-me do modesto conhecimento que tenho sobre a literatura da especialidade, não vejo como não colocar Eusébio Johane Tamele, ou Zeburani como era popularmente chamado, no rol daqueles intérpretes que usam a sátira como elemento básico nas suas composições.

A sátira, representada pelas conhecidas «cantigas de escárnio e de mal dizer», encontramo-la com frequência nas letras de Zeburani, que as recria com rara beleza e, buscadas do vasto cancioneiro satírico de que Chibuto, é muito rico.

Nas composições de Zeburani, tal como acontece com os intérpretes deste género musical, já não é o sarcasmo que predomina, mas antes a nota graciosa e leve, ditada pela ironia, que nem por isso deixa de ferir algumas susceptibilidades.

Para nós, Zeburani fá-lo com muita delicadeza, não abdicando da sua função social e correctiva.

Por exemplo, na canção Tshunela Seyo, Zeburani deixa um pouco a sátira de lado para entrar no domínio do humorismo. É um jogral entre marido e esposa, com esta a advertir o parceiro a não se aproximar de si, porque tem o filho doente. E depois…

Bem, e depois a mulher não cede à sedução, e o homem procura, pela aldeia adentro, quem lhe possa comer o limão

marrabenta Não acabo esta abordagem à música de Eusébio Johane Tamele, ou melhor Zeburani, sem antes colocar na mesa mais uma pergunta pretensiosa.

Quem gosta da música blues, sabe que este estilo musical se caldeou e sedimentou a partir de vários estilos musicais europeus e africanos levados para as Américas pelos colonizadores e pelos respectivos escravos.

Bava A Nga Pswalanga”, é provavelmente o tema mais conhecido de Eusébio Johane Tamele. Considero esta canção um blues na sua forma mais pura ou, mais precisamente, um folk blues que, como se sabe, é uma das raízes deste estilo musical que se desenvolveu nos Estados Unidos da América.

Capa do CD "Forgotten Guitars From Mozambique" de guitarristas moçambicanos gravados na Africa do Sul nos anos 50

Capa do CD "Forgotten Guitars From Mozambique" de guitarristas moçambicanos gravados na Africa do Sul nos anos 50

Numa espécie de tira-teimas, comparemos Bava A Nga Pswalanga, do nosso Zeburani, com o tema Cocaine interpretado, na sua forma original, pelo nova-iorquino Dave Van Ronk e tornado porém famoso, nos anos 70, pelo guitarrista e bluesman britânico Eric Clapton.

Com o mesmo propósito comparativo existem nas respectivas produções discográficas um soul da Geórgia interpretado por Otis Ray Redding, Jr., um blues do delta do Mississipi executado por Mississipi John Hurt, e um blues da savana de Chibuto intitulado Bava a nga pswalanga de Eusébio Johane Tamele, ou melhor, de Zeburani.

Se por ventura escutar as trés propostas, o leitor que tire as suas conclusões, sendo que a nossa é de que Zeburani, sim, foi um bluesman.(X)

(*) Texto de Autoria de Luís Loforte, adoptado do Programa radiofónico “Clube dos Entas” transmitido na Rádio Moçambique, Antena Nacional, na frequência FM 92.3: Quinta-feira (22H05) e Segunda-feira (02H05). O programa é produzido e apresentado por Edmundo Galiza Matos, com créditos técnicos de Nassurdine Adamo.